terça-feira, 10 de maio de 2011

TROVA DO VENTO QUE PASSA



A política causa-me nojo e incomodidade porque atrai toda a sorte de sentimentos humanos negativos: a mentira, a traição, a maledicência, a inveja, a vaidade e a corrupção. Diz o meu tio que é na política e na guerra que melhor se conhece a vertente negra dos homens.

Detestando a política, porque me interesso por ela? Apenas porque joga com os meus interesses imediatos, mexe com o meu futuro, com o meu bem-estar económico e social. Além disso a minha formação incita-me ao seu aprofundamento e à investigação do comportamento actual e passado dos políticos proeminentes.

Estava eu sentado no areal da Foz do Arelho, a poucos metros do mar, de costas voltadas para a lagoa, quando à minha esquerda vejo o Manuel Alegre a pescar, com uma caninha na mão. Parecia uma estátua, ali especada e calada.

E vieram-me à memória os seus méritos e defeitos.

Foi ele o autor da letra de uma das canções que mais me sensibilizaram, criada muito antes de eu ter nascido e cantada pelo falecido Adriano Correia de Oliveira: «trova do vento que passa».

Era ele o dono da voz máscula e convincente que vinha de uma longínqua rádio escondida na Argélia e que todos os oposicionistas portugueses, antes de Abril de 1974, gostavam de ouvir, incluindo o meu tio, seu antigo camarada na actividade política.

Não soubesse eu mais nada daquele homem barbudo e julgaria tratar-se de um herói, merecedor de todas as honrarias, incluindo uma estátua no Largo 25 de Abril. Só que, embora sendo ele uma pessoa tendencialmente séria, está muito longe de constituir o meu modelo de político ideal.

Não possuindo o dom da humildade que caracteriza os grandes homens, auto-intitula-se, a pretexto de tudo e de nada, «patriota», «anti-fascista», «democrata de esquerda» e «defensor das classes desfavorecidas». E tantas vezes reivindicou tais atributos que se terá convencido da existência deles.

Como poderá este recto democrata de referência ter feito tantas curvas e tantos golpes de rins para tentar conseguir, por duas vezes, ser Presidente da República?

Como conseguirá este patriota, defensor da justiça social, sabendo que andam por aí tantos reformados miseráveis, receber do Estado duas pensões completas (uma por ter sido deputado e outra por ter trabalhado durante uns escassos três meses na antiga Emissora Nacional)? Julgará ele ser justo que um cidadão de um país pobre e endividado receba duas elevadas reformas completas como se tivesse trabalhado durante a vida, a tempo inteiro, em dois empregos diferentes?

Já nem falo do seu atribulado serviço militar, que cortaria as pernas, num país civilizado e exigente, a qualquer cidadão com pretensões políticas. 

Mas não consigo esquecer-me daquela palhaçada na Assembleia da República quando um deputado, depois de cumprir prisão durante uns tantos meses, foi solto e regressou ao parlamento. Não é que eu não admita que a justiça, ao perseguir de forma tão persistente e dura aqueles arguidos que ainda andam a ser julgados, não esteja a exagerar. Só que esse exagero resulta do cumprimento rigoroso da lei que ele próprio e outros fizeram publicar. 

E se os magistrados agiam de acordo com a lei, porque haveria ele de colocar-se do outro lado da barricada, fazendo questão em mostrar-se nas televisões por esse «feito patriótico»? Ou estaria ele convencido de que o tal deputado não teria estado envolvido nos incidentes relacionados com a Casa Pia? Se assim foi, como poderá a sua inteligência dar-lhe a certeza de que estes ou aqueles, no secretismo das suas vidas privadas, não gostem disto ou daquilo e não «pequem» aqui ou acolá?

As minhas investigações conduziram-me ao longínquo ano de 1985, quando o povo passava mal e andara por aí o Fundo Monetário Internacional a evitar a bancarrota do País. 

Alegre era então um acérrimo defensor do projecto de lei que permitia aos deputados reformarem-se vitaliciamente com 8 anos de serviço! Numa reunião do grupo parlamentar do PS três deputados de «segunda linha» manifestaram-se contra tal lei. Mas Alegre defendeu-a com unhas e dentes.

E, tal como eu, adorava fazer viagens por esse mundo fora. Só que eu viajava à custa do meu pai mas ele aproveitava todas as oportunidades de viajar à custa do erário público, sem vantagem de qualquer espécie para a Pátria.

E viajando tanto de borla ainda teve a distinta lata de opor-se a que os deputados socialistas fizessem as suas jornadas parlamentares no Algarve, em pleno Inverno, a expensas próprias.
-- Que se passa aqui?, perguntou o primeiro ministro Mário Soares ao entrar na sala dos socialistas
José Luís Nunes, o presidente do grupo parlamentar explicou:
-- Os deputados, pagando do seu bolso a estadia, optaram pelo Algarve dada a circunstância de haver lá um hotel que faz um desconto… Mas o Alegre opõe-se alegando que o povo português não vai gostar de ver os seus representantes no Algarve num momento de crise, em que aperta o cinto…
-- Mas que tem o povo a ver com o sítio onde os deputados se vão reunir? Suportando as suas despesas poderão fazê-lo no Minho, nas Beiras ou no Algarve!
A voz potente e os argumentos inconsistentes do nosso patriota foram desse modo silenciados.

É fácil a um cidadão ambicioso dizer todos os dias que defende a «esquerda», a «democracia», a «justiça social», o «povo» e a «pátria». Mais difícil é praticar o que diz defender.

Talvez Alegre tenha um dia a ambicionada estátua na praça central da sua terra. Mas nunca pela sua actividade política ou cívica. Apenas pela «Trova do Vento que Passa».

  

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