sábado, 4 de maio de 2013

A Tranca


Aprendi a compor um sorriso de plástico para exibir nas entrevistas de emprego. Depois, pela força do hábito, o sorriso foi-se mantendo como um tique difícil de eliminar, dando a impressão às pessoas de que sou um indivíduo simpático, quando na realidade não passo de um bruto. Tento adoptar técnicas de sobrevivência no seio desta mediocridade que me cerca mas procuro manter o nariz acima do nível da merda, para não sufocar. Há uns tempos consegui ser o primeiro classificado e fui admitido naquele escritório. Mas o ambiente interno era insuportável. Tinha uma colega irritante, uma horrível Tranca, de meia-idade, que vigiava o meu trabalho e ia confidenciando ao chefe os meus supostos defeitos. Contava as vezes que eu ia ao Café da esquina. Era uma vaca ordinária, de mau íntimo. Quando a via aproximar-se de mim com ensaiados salamaleques, eu disfarçava o mal-estar que sentia e mostrava-lhe o habitual sorriso amarelo. Burra que era, não imaginava a repugnância que me causava. Estaria eu condenado a conviver com aquela besta humana de manhã à noite? Ultimamente vinha-me falando da crise. Espanha, Itália, Irlanda, Grécia e Chipre estão a afundar-se? Ainda bem porque assim não é apenas Portugal que anda em apuros. A mula não entendia que quanto mais se afundarem os outros mais nos afundaremos nós. Morreu de repente o Sr. Ricardo, um honesto homem, com um comércio a uns metros do escritório. Veio ela de imediato contar-me, com disfarçada alegria, tal evento, explanando-me a vida privada do infeliz e todas as suas imperfeições. Uma maledicência indecente. Lia-lhe na alma o sentimento animalesco do egoísmo e da inveja que ela, em vez de tentar atenuar, explorava para lhe alimentar a velhaca satisfação com os males alheios. Maldita mulher! O Sr. Manuel da tipografia ficou sem emprego e perdeu a casa e o automóvel. E lá me apareceu a Tranca narrando-me os pormenores da desgraça, não conseguindo ocultar a sua satisfação íntima. Era um asqueroso verme que não largava a Igreja de Santa Cristina, era ali que, todas as manhãs, ao caminhar para o escritório, ia limpar a sua conspurcada alma, pedindo perdão pelas malfeitorias do dia anterior. E saía de lá sempre limpa, com os pecados apagados, disponível para cometer outros ainda piores ao longo de cada dia. Abandonei o emprego, não suportava mais aquele estupor.

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