Hoje, depois de quase dois anos de afastamento, encontrei forma de entrar no café do centro cívico. Não notei nenhuma mudança, a disposição das mesas é idêntica. Sentei-me no meu canto preferido. Era ali que, ocasionalmente, tomávamos a bica enquanto conversávamos sobre questões do foro político, e por vezes do âmbito privado. Fora meu professor no secundário e mais tarde ficámos amigos. Como eu detestara a escola primária e depois a secundária! Sentia-me muito mal, enclausurado numa sala de aula, amarrado a uma carteira horas a fio, com curtos intervalos, sempre desatento, queimando o tempo a fazer rabiscos em papéis ou olhando o vazio. Foi num desses intervalos que vi o Vítor do rabecão, muito zangado, a dar um potente murro numa mesa de contraplacado, deixando nela um buraco. A partir daí os colegas do futuro catedrático passaram a chamar-lhe «Pata de Boi». A escola era para mim uma prisão e só ficava aliviado quando ao fim de cada dia me libertava dela. Um dia o arquitecto puniu tal desinteresse com uma verdascada na minha cabeça. Mas nunca lhe recordei esse incidente. Falou-me uma vez da incomodidade causada por sintomas que sugeriam uma doença séria. Disse-lhe que um dos meus amigos, residente numa cidade próxima, havia sofrido exactamente do mesmo mal. Sujeitara-se a uma curta intervenção uma dúzia de anos antes e tudo ficara solucionado. Pediu-me então o seu endereço para trocar impressões com ele. Mais tarde soube que se encontraram mas nunca quis saber pormenores da conversa travada e não voltámos a falar nisso. Via o arquitecto com frequência no trajecto de 300 metros que separavam o seu atelier do café. A última vez foi junto da farmácia, entretanto encerrada. Tencionava voltar a encontrá-lo por ali quando o meu impedimento estivesse ultrapassado. Mas já não fui a tempo. Ele sofreu um grave acidente durante uma curta estadia na sua aldeia transmontana e morreu. Completar-se-ão amanhã oito meses. Sentado, com o «expresso» aberto na mesa do café, recordei aquele dia em que li no jornal da terra uma notícia que envolvia o meu nome. Segundo o estranho texto, numa palestra proferida algures, eu havia criticado grosseiramente a obra do arquitecto, nas suas costas, quando ele estava na capital para tratar de um problema cardíaco. Fora um lapso de um jornalista imbecil. Para desfazer o equívoco, liguei durante dias para o seu telefone mas ainda andava por Lisboa. Depois deixei-lhe uma mensagem na sua caixa do correio. Quando regressou ao trabalho garantiu-me que estava seguro da minha inocência. Fora a mesquinha vingança de um antigo empregado, «velhaco e malcheiroso». Não verei mais o arquitecto Fernando Pinto Sousa, e talvez não volte a entrar naquele café. Restarão as duas garrafas da sua produção de vinho do Douro que teve a gentileza de oferecer-me em anos diferentes.
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